Residência artística e exposição

Jardim Botânico da Universidade do Porto

O desejo humano de conhecer e perceber o mundo e as suas manifestações visíveis encontra uma possibilidade de realização com o aparecimento da fotografia. É deste modo que “I am burning with desire to see your experiments from nature” – célebre frase de uma carta de Daguerre dirigida a Niepce nos primórdios do desenvolvimento deste meio – é convocada como título da exposição do Colectivo Imagerie, não apenas como fonte de inspiração, mas como um método para pensar a fotografia e os seus processos.

As três propostas – de José Domingos, Magda Fernandes e Sofia Berberan – surgem da residência artística realizada no Jardim Botânico da Universidade do Porto, e procuram explorar o fotográfico, ou seja, um conjunto de conceitos e reflexões para pensar e sentir a imagem fotográfica num espaço que também convida a pensar e problematizar o que entendemos hoje por natureza.

A experiência com o lugar proporciona encontros com os ciclos vitais das plantas que aqui habitam, e que desvelam a história deste espaço num diálogo simbiótico entre a arquitectura vegetal e a organicidade estrutural das estufas abertas e fechadas. Uma área de preservação botânica com características específicas para aclimatar algumas espécies convive ao lado da sua própria arqueologia, habitada por variedades que definir em alguns casos como invasoras ou espontâneas seria redutor, acabando por levar-nos a questionar as fronteiras destas definições. E neste intervalo espacial entre umas e outras estruturas ainda podemos seguir outros caminhos, desta vez apenas com o andar dos olhos ao observar alguns destes vidros protectores.

São os trilhos dos caracóis, percursos que equilibram a linearidade e geometria dos espaços desenhados pela mão humana e que nunca avançam em linhas rectas, desenhando topografias e paisagens como vistas aéreas. É este o percurso que Magda Fernandes nos convida a atravessar com os seus estudos sobre a superfície, que são também uma oscilação entre uma observação lenta que é própria da fotografia experimental e o seu registo volátil, como pó de clorela que dá forma a uma imagem se exposto à luz e desvanece num sopro, ou uma folha de árvore que alterará o seu estado num curto período de tempo.

As sobreposições de texturas são exploradas nas colagens nas impressões fotográficas em folhas de hibisco sobre folhas de papel bordadas a vermelho com elementos arquitectónicos que são reconhecíveis passeando por este jardim botânico. Se uma folha de papel é um armazém, que pode conter palavras escritas, desenhos, imagens impressas com a luz, tal como a folha de uma árvore armazena a luz solar, será possível descrever por cima de folhas vegetais – nas quais estão impressas imagens de outras plantas que moram neste jardim – uma estufa, estantes para vasos, uma porta? É preciso uma árvore para fazer uma casa, tal como é preciso um jardim para construir uma cidade. Nesta alteração de escala onde se guardam umas imagens e se sobrepõem outras, onde a luz se imprime, podemos reencontrar uma relação com o espaço que ocupamos, como o habitamos e com quem.

A reflexão sobre o fotográfico no trabalho de Sofia Berberan é abordada por uma metafotografia, que opera não por meio de processos fotográficos experimentais, mas por uma representação ao nível do simbólico através de uma performatividade em que a figura humana e fotografia se tornam um só corpo. Numa primeira fase de captura, procura-se estabelecer uma relação entre fotografante e fotografado. Ao disparar da máquina fotográfica o olho fecha-se e não vê e naquele instante de cegueira Captura-se uma imagem que prende quem está de um lado e do outro da objectiva numa rede que se materializa visualmente pelos limos que vivem na paisagem aquática onde se insere esta instalação, guardando um momento que já passou – como indica a escrita que alguém deixou por cima deste tanque, “just memory”.

A ideia de ardência é associada por um lado a um incontentável desejo de ver, como também a uma potência destruidora de Devoração, que se manifesta tanto na planta carnívora que gradualmente se irá apropriando da imagem, como no vermelho da roupa e das flores da árvore do fogo (que se encontra neste jardim) que ocultam o rosto impossibilitado de cumprir o seu desejo, a não ser acabando por sucumbir a ele. Segue uma última fase de Ressurreição, tomando este título a partir da planta que hospeda cada uma destas imagens e cuja particularidade é de, apesar de estar morta, reagir aos estímulos vitais ora abrindo-se e fechando-se, ora em tonalidades verdes e outras acastanhadas. Neste contacto entre botânica e fotografia procura-se, entretanto, uma relação de reciprocidade entre luz e olho, remetendo para um desejo de fotografar que não é tanto ligado a uma técnica inventada num momento histórico específico, quanto a um desejo primordial de ver do ser humano, que culmina numa espécie de alucinação visual.

Esta teatralização da figura humana numa luminosidade incorpórea e incandescente, contrasta com as plantas envolventes, seres capazes de absorver e alimentar-se de luz e “olhar” para o sol mantendo o próprio cromatismo em tons de verde, cor que simboliza vitalidade ao mesmo tempo que proporciona um efeito calmante no olhar humano.

José Domingos conduz-nos numa viagem pelo tempo através de uma cinefotografia que fragmenta sequências temporais abrindo espaços de memória, de demora, numa escuta rítmica como com o som de uma câmara lomokino em accão, ou os pássaros que voam por este jardim, ou até o ruído constante e próximo dos carros, que nos relembra a nossa localização dentro da malha urbana, em contraponto à observação desacelerada que nos é proposta. Deste modo, uma folha de papel apoiada por cima de uma parede de uma antiga estufa – quase como uma peça de vestuário numa figura pintada ou esculpida – oscila entre as pedras que tentam prendê-la e o vento que a agita, até uma provável Queda. No entanto, a própria folha parece animar-se e colorir-se passando ao plano tridimensional com a sobreposição de três impressões num verde destinado a desvanecer pela exposição solar e outros agentes atmosféricos, e que mostram uma imagem de arquivo com uma das estufas deste jardim no tempo em que foi inaugurado em meados do século passado.

A cor e a vida aquática das algas conectam-se com algumas espécies botânicas que se juntam e amontoam em alguns dos tanques das estufas. Qualquer tentativa de Afastamento entre elas será apenas momentânea e os espelhos de água que o movimento da mão revela, gerando formas variadas e casuais, rapidamente será ocultado por estes organismos tão antigos que nos permitem ligar o nosso presente às primeiras formas de vida no planeta. A própria técnica fotográfica, ao conviver e experienciar este ecossistema subaquático num Mergulho do próprio rolo antes de ser revelado encontra um duplo acaso, já que o processo da fotografia analógica obriga sempre a considerar uma eventual perda que se pode tornar um feliz encontro de imagens e texturas.

Na reflexão sobre o fotográfico que o Colectivo Imagerie apresenta neste conjunto de criações diferenciadas e dialogantes, podemos reconhecer uma consciência ecológica que se manifesta no entendimento de múltiplas formas de temporalidades que coexistem e que nos convida a observar com novos olhos a natureza em que os trabalhos apresentados se inserem e não só. No meio da crise ambiental e do contexto pandémico à escala global que estamos a viver, aceitar um convite para o reencantamento como este é certamente desejável.

Vanessa Badagliacca