Residência artística e exposição

Estufa Fria de Lisboa

Entre o desejo de ver como pulsão e curiosidade, e a natureza, conceito móvel e que nos dias de hoje nos obriga a reflectir sobre o impacto da humanidade no planeta, há um lugar de acção e de experiências, que se concretiza na fotografia experimental. É deste modo que “I am burning with desire to see your experiments from nature” – célebre frase de uma carta de Daguerre dirigida a Niepce nos primórdios da fotografia – é convocada como título da exposição do Colectivo Imagerie, não apenas como fonte de inspiração, mas como um método para pensar a fotografia e os seus processos.

Em analogia com a estrutura tripartida da Estufa – Fria, Quente e Doce –, não de forma propositada, mas como desenvolvimento orgânico da residência artística realizada neste espaço, as três propostas – de José Domingos, Magda Fernandes e Sofia Berberan – compõem-se por tríades em que cada momento se posiciona em continuidade com os outros dois. Estas triangulações são núcleos que se intersectam, tal como a forma de trabalhar em colectivo que estes três autores têm vindo a desenvolver. Neste lugar intermédio, entre o desejo e o discurso que o título evoca, encontra-se o território da fantasia que se materializa na fotografia.

Comecemos pelas pedras. Imaginemos este espaço como se fosse observado por uma pedra, depois outra, mais uma ainda e assim sucessivamente; um objecto que podemos segurar nas mãos, cujo “olho” poderia estar num sítio qualquer das suas faces. O que poderia ver, o que nos poderia contar deste espaço: será esta narrativa mesmo possível? É este o desafio que José Domingos coloca ao inserir câmaras estenopeicas que passam plenamente despercebidas na estrutura onde se inserem. O resultado produz múltiplas perspectivas que ampliadas provocam uma multiplicidade vertiginosa em que parece sermos imersos numa floresta tropical em que a escala humana é inevitavelmente reduzida.

No entanto, os pormenores arquitectónicos que ficam impressos na imagem trazem-nos de volta para este espaço verdejante que se insere na malha urbana, deixando-nos num lugar intermédio entre uma perspectiva que descentraliza a nossa passagem humana por este espaço ao mesmo tempo que nos informa de se tratar de um espaço controlado e cuidado pela mão humana. Uma oscilação entre um controlo que remete para as câmaras de vigilância e consequente tradição de relação entre fotografia e poder, e a desobediência, subvertendo este código através de um processo fotográfico experimental em que a mão do fotógrafo é apenas um intermediário de imagens cujos resultados são imprevisíveis. Imagens escritas dentro de pedras, com a luz e a ausência dela.

Esta oscilação entre peso e leveza mostra-se também nos volumes destas câmaras expostos quase suspensos por cima de um leito vegetal como se fossem flores ou criaturas voláteis. Formas que tornam visíveis elementos que a um olhar menos atento e de passagem por este espaço passariam completamente despercebidos. E, no entanto, as câmaras que estas pedras são, ou que mimeticamente reproduzem formas minerais, também nos interrogam sobre o estar das coisas, dos elementos mais que humanos independentemente do nosso olhar sobre eles, da nossa acção sobre e com eles.

A fotografia como acto de atenção numa perspectiva mais que humana, em que o fotógrafo se torna de alguma maneira figura mediadora é explorada por Magda Fernandes a partir do comportamento dos espécimes botânicos presentes neste jardim, em relação com factores diferentes, desde a luz solar filtrada, que atravessa o tecto de ripas, à rega faseada em momentos específicos do dia, o processo fotográfico torna-se propositadamente uma espécie de facilitador da aparição da imagem. Estacas que normalmente são utilizadas para indicar a denominação de uma espécie botânica apresentam lumens que abrem janelas sobre outras vistas possíveis no meio da vegetação envolvente que procuram captar.

A tentativa de registar o movimento das plantas, as sombras, as alterações de luz neste espaço dependendo da hora, manifesta-se em processos fotográficos que tornam visíveis momentos efémeros, que fogem ao olhar humano, e com que mais uma vez somos transportados num território imaginário. Esta procura de compreensão do ser vegetal não se realiza apenas pela observação, mas incorpora-se numa exploração performativa em que fotógrafa e fotografia colidem numa tensão para se tornarem planta ou um ser intermédio entre a terra e o céu, numa aproximação à natureza que altera as relações convencionais entre sujeito e objecto, permitindo que a natureza se retrate a si própria, que a fotografia se fotografe a si própria.

A investigação sobre o meio fotográfico – mais uma vez atravessada por uma performatividade em que a figura humana e fotografia se tornam um só corpo – é levada ao plano do simbólico no trabalho de Sofia Berberan, uma meta-fotografia que se propõe reflectir sobre si própria com uma linguagem figurativa que procura ocultar qualquer forma de fácil representação. Trata-se de imagens impermanentes e mutáveis pelas condições atmosféricas a que estão sujeitas, tal como todas as que estão presentes nesta exposição.

Em Shoot (Nymphoides peltata), palavra que reúne os significados de disparo, fotográfico ou de uma arma, e também de rebento vegetal, a figura humana disposta horizontalmente está prestes a desaparecer pela acção dos agentes que habitam o ambiente subaquático onde se insere. Tentativa de materializar a dualidade oposta entre a fotografia que mata e faz morrer e onde o único sobrevivente é uma planta – um nenúfar no caso específico. A reconfiguração da imagem por múltiplas esferas em Falling (Adiantum capillus-veneris) parece novamente aludir a uma dimensão desejante de quem fotografa e que nesse mesmo acto, em que dispara e não vê, é destinado à queda e a sua própria destruição. O desejo de ver, como indicado em sentido etimológico no título Scopophilia (Hedera helix), acto fatal e audacioso, é associado ao veneno (às bagas venenosas da hera), de modo que à medida que este desejo é saciado pela figura de olhos abertos que se alimenta das plantas, está destinada a sucumbir. Neste processo em que fotografia e fotografante se aliam em predar imagens fotografadas, existe uma lei natural e não escrita em que esta atitude extractivista é inevitavelmente vencida – como simbolicamente é mostrado nestes trabalhos em que afinal quem resiste são sempre os seres vegetais.

Se por um lado José Domingos e Magda Fernandes proporcionam possibilidades sustentáveis da fotografia em coexistência com os mundos mais que humanos, Sofia Berberan mostra-nos as consequências que uma atitude predatória da fotografia pode ter. E se associarmos novamente a fotografia com a fantasia pelos percursos que o Colectivo Imagerie nos convida a trilhar, nesta vertigem, nesta incerteza, neste abandono aos fenómenos contingentes e impermanentes, neste território limiar entre natureza e cultura, de serendipidade e encontros imprevistos podemos encontrar novas maneiras de estar e viver em relação com a natureza de que formamos parte. No meio da crise ecológica e do contexto pandémico à escala global que estamos a viver, aceitar um convite para o reencantamento como este é certamente desejável.

Vanessa Badagliacca